Tadeu Jungle: legenda como poema, imagem como desvio
A exposição Fotolegenda, de Tadeu Jungle, apresenta 32 imagens extraídas de filmes aleatórios, fotografadas diretamente da tela com suas respectivas legendas. O gesto, aparentemente simples, revela uma operação sofisticada de deslocamento semiótico: ao interromper o fluxo audiovisual e converter o instante cinematográfico em imagem fixa, Jungle transforma o fotograma em campo de multiplicidade sígnica. A legenda, que no cinema convencional funciona como suporte de compreensão, aqui se sobrepõe à narrativa, desestabilizando sua linearidade e instaurando uma tensão entre texto e imagem que busca à reverberação.
Essa fricção entre palavra e visualidade remete à tradição da poesia concreta, da qual Jungle é um interlocutor singular. Desde os anos 1980, sua produção se caracteriza pela exploração da simultaneidade entre o verbal, o sonoro e o visual; mas não como ornamento, pois como estrutura. A legenda, nesse contexto, não é acessória: é corpo textual que interfere na imagem, desloca seu sentido e a aproxima da linguagem poética. A palavra, ao ser congelada junto à imagem, deixa de ser funcional e passa a operar como signo autônomo, abrindo espaço para leituras múltiplas e não lineares.
Essa dimensão se expande na instalação sonora em parceria com o maestro Luiz Macedo, concebida especialmente para o espaço da galeria. As falas presentes nas legendas são reelaboradas e reproduzidas no espaço expositivo em modos diversos e aleatórios, criando uma polifonia fragmentada que ecoa os princípios da poesia concreta, especialmente a ideia de que o som, o ritmo e a espacialidade verbal são constituintes do sentido. O resultado é uma arquitetura sonora que não acompanha as imagens, mas as atravessa, instaurando um sistema de ressonâncias que reforça o caráter metalinguístico da obra.
A sala expositiva torna-se, assim, um circuito autônomo de imagens e sons que funcionam em torno de si mesmos. Não há narrativa, nem coerência discursiva. O que se vê e se escuta são fragmentos; vozes deslocadas, ruídos de sentido, cortes abruptos que desarticulam qualquer expectativa de continuidade.
Essa abordagem repercute, em certo sentido, na trajetória do artista como integrante do coletivo TVDO (1980), cuja máxima – “cinema e/ou TV, tudo conforme a tela que se vê” – propunha uma crítica radical à linguagem televisiva dominante. A metatelevisão praticada pelo grupo não se limitava à paródia: era uma reconfiguração dos meios de produção e circulação da imagem, uma tentativa de romper com os modelos narrativos hegemônicos e instaurar uma estética do desvio. Jungle, nesse contexto, consolidou uma prática que atravessa vídeo, fotografia, poesia visual e instalação, sempre em busca de novas formas de pensar a imagem.
A mostra na Kobbi Gallery atualiza esse espírito para um tempo em que a arte é cada vez mais absorvida por circuitos rápidos de legitimação, plataformas algorítmicas e fluxos institucionais precarizados. Ao fotografar a tela legendada, Jungle propõe uma escavação semântica que transforma o banal em signo, o acaso em método, o ruído em estrutura. Sua obra resiste à lógica da transparência e da eficiência comunicacional, afirmando a arte como espaço de fricção, lentidão e pensamento.
Fotolegenda propõe a imagem como território de disputa, a linguagem como matéria plástica em constante reconfiguração, e a arte como campo de desvio. Jungle convoca o espectador a interromper o automatismo da percepção e à absorver suas foto-poemas na recusa do sentido imediato, convidando o observador à pausa e ao jogo das associações livres.
Em tempos de hiperprodutividade visual e consumo acelerado de signos, Tadeu Jungle reafirma a importância do gesto mínimo, da dobra, da ressignificação e da pausa. Sua obra é um convite à reflexão. E talvez seja justamente essa sua maior contribuição: afirmar que tudo pode ser arte, desde que haja desvio; que tudo pode ser programa, desde que haja crítica; que tudo pode ser imagem, desde que haja pensamento.
Fabrício Reiner
curador
Tadeu Jungle: captions as poems, images as detours
The exhibition Fotolegenda by Tadeu Jungle presents 32 images extracted from random films, photographed directly from the screen together with their respective subtitles. The gesture, seemingly simple, reveals a sophisticated operation of semiotic displacement: by interrupting the audiovisual flow and converting a cinematic instant into a fixed image, Jungle transforms the frame into a field of multiple signs. The subtitles, which in conventional cinema are used as a tool for comprehension, here overlay the narrative, unsettling its linearity and creating a tension between text and image that seeks reverberation.
This friction between word and visuality recalls the tradition of concrete poetry, of which Jungle is a singular interlocutor. Since the 1980s, his work has been marked by the exploration of simultaneity between the verbal, the sonic, and the visual— not as an ornament, but as a structure. In this context, the subtitle is not an accessory: it is a textual body that interferes with the image, shifts its meaning, and draws it closer to the poetic language. When the word is frozen alongside the image, it ceases to be functional and begins to operate as an autonomous sign, opening space for multiple, non-linear readings.
This dimension expands in the sound installation created in collaboration with maestro Luiz Macedo, conceived specifically for the gallery space. The spoken lines from the subtitles are reworked and reproduced in the exhibition space in various and random arrangements, creating a fragmented polyphony that echoes the principles of concrete poetry; especially the idea that sound, rhythm, and the spatiality of words are integral to meaning. The result is a sound architecture that does not accompany the images, but rather traverses them, establishing a system of resonances that reinforces the work’s metalinguistic character.
The exhibition space thus becomes an autonomous circuit of images and sounds that revolve around themselves. There is neither narrative nor discursive coherence. What is seen and heard are fragments: displaced voices, semantic noise, abrupt cuts that dismantle any expectation of continuity.
This approach resonates, in a way, with the artist’s trajectory as a member of the TVDO collective (1980), whose motto—“cinema and/or TV, all according to the screen you see”— proposed a radical critique of the dominant television language. The metatelevision practiced by the group went beyond parody: it was a reconfiguration of the means of production and circulation of images, an attempt to break with hegemonic narrative models and to establish an aesthetic of detour. Within this context, Jungle developed a practice that crosses video, photography, visual poetry, and installation; always in search of new ways to envision the image.
The exhibition at Kobbi Gallery updates this spirit for a time when art is increasingly absorbed by fast circuits of legitimation, algorithmic platforms, and precarious institutional flows. By photographing the subtitled screen, Jungle proposes a semantic excavation that turns the banal into sign, chance into method, noise into structure. His work resists the logic of transparency and communicational efficiency, asserting art as a space of friction, slowness, and thought.
Fotolegenda presents the image as a contested territory, language as plastic matter in constant reconfiguration, and art as a field of detour. Jungle invites the viewer to interrupt the automatism of perception and to absorb his photo-poems in the refusal of immediate meaning, encouraging pause and the play of free associations.
In times of hypervisual productivity and accelerated consumption of signs, Tadeu Jungle reaffirms the importance of the minimal gesture, the fold, re-signification, and the pause. His work is an invitation to reflection. Perhaps this is precisely its greatest contribution: to affirm that everything can be art, as long as there is detour; that everything can be a program, as long as there is critique; that everything can be an image, as long as there is thought.
Fabrício Reiner
curator
![[screams], 2015](https://kobbigallery.com/storage/uploads/exhibitions/works/01K3NWHKXASQBR9CMXCV14G105.jpg)
![[indistinct conversations], 2015](https://kobbigallery.com/storage/uploads/exhibitions/works/01K3NXAT9HV9BN13MRXRAPBWEJ.jpg)
